segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Protestantismo, cultura e arte


“A música é uma esplêndida dádiva de Deus e eu gostaria de exaltá-la com todo o meu coração e recomendá-la a todos” (Martinho Lutero).

Podemos notar que o reformador alemão Martinho Lutero louva e agradece a Deus pela dádiva da música, independentemente se tal expressão cultural for secular ou religiosa. Como bem sabemos, Lutero foi um compositor de mão cheia. Entre os inúmeros hinos de sua autoria, podemos citar o célebre “Castelo Forte”, conhecido como a Marselhesa da Reforma.

É um grande erro acreditar que a expressão musical, para Lutero, tivesse apenas um cunho litúrgico-religioso. Revela a história que o pai do protestantismo era um exímio flautista, assim como possuía certa habilidade com o alaúde. Seu prazer em reunir os amigos, cantar canções não religiosas, geralmente em volta de uma mesa, animado pela famosa cerveja alemã, era enorme. Segundo Johann Mathesius, amigo íntimo do reformador, “Quando o doutor havia trabalhado até a exaustão, ele se divertia à mesa e, muitas vezes, cantava um pouco. Na presença das pessoas apropriadas, cantávamos as últimas palavras de Dido contidas no Dulces exuviae (“ Doces Despojos”) de Virgilio. E Melanchton também se juntava ao canto”.

Zuínglio, o pai da tradição reformada na suíça de fala alemã, apesar de ter banido completamente a música do serviço de culto, foi um habilidoso instrumentista. Bach, a despeito de suas monumentais composições sacras, como a belíssima “Paixão Segundo São Mateus”, compôs inúmeras peças musicais não religiosas.


No âmbito das artes visuais, temos o exemplo de Rembrandt, holandês, considerado um dos maiores pintores da história da arte. Sendo um cristão reformado devoto, boa parte de seus quadros expressavam temas bíblicos com um realismo impressionante. Porém, o renomado cristão holandês não deixou de pintar telas seculares e belíssimas, como a famosa “Ronda Noturna” ( imagem ) .


Com todos estes exemplos, fica claro que, excetuando alguns momentos de radical iconoclastia, a geração dos primeiros reformadores, assim como seus seguidores, enxergava a cultura e a arte de uma maneira absolutamente positiva, e raramente a separavam em círculos ditos “sagrados” e “seculares”. Segundo o tradicional conceito da soberania de Deus sobre todas as coisas, tudo que foi feito para alegrar o ser humano, desde que com moderação, é uma verdadeira dádiva divina.


Esta situação mudou de figura, por volta do século XVII, principalmente pela deturpação teológica ocorrida no calvinismo posterior, principalmente entre os puritanos britânicos. Segundo o pensamento puritano, tudo aquilo que não tivesse uma utilidade realmente prática e, principalmente, religiosa, deveria ser considerado frugal, portanto, completamente dispensável. Entretanto, mesmo neste contexto completamente desfavorável à cultura, tivemos excelentes obras literárias oriundas das penas de famosos cristãos puritanos, como o “Paraíso Perdido”, de John Milton e “O Peregrino”, de John Bunyan. Mesmo assim, estas obras tinham um cunho fortemente teológico.

Desta forma, esta verdadeira aversão à arte e à cultura como divertimento foi exportada para os Estados Unidos e, posteriormente, para o Brasil, via missões estrangeiras.

Chegando ao Brasil, os missionários norte-americanos encontraram uma cultura completamente diferente de sua sisuda cultura anglo-saxã. Nosso país foi formado por uma rica mistura de ibéricos (portugueses e espanhóis), negros e indígenas, povos marcados por certa “sensualidade” e alegria de viver, mesmo no meio de tanta pobreza e injustiça, como o caso da nefasta escravatura negra.

Sendo assim, o protestantismo brasileiro tornou-se, em muitos casos, uma “contracultura” dentro do país. Além de pregar o evangelho, o protestante brasileiro, enormemente influenciado por sua matriz norte-americana, repeliu, com veemência, a cultura tradicional brasileira. Um dos maiores exemplos é a verdadeira repulsa cultivada no meio evangélico pelas típicas festas de nosso folclore. Em resumo, o repúdio à arte e à cultura como entretenimento, assim como uma quase que completa negação da cultura tipicamente brasileira, tem feito com que o protestantismo brasileiro tenha uma influência irrisória neste campo.

Tirando a enorme colaboração no ramo da educação, como é o caso do saudoso Eduardo Carlos Pereira, que, além de pastor, foi um renomado gramático, e de outras personalidades que se dedicaram a outras formas literárias, como Júlio Ribeiro, Ariano Suassuna e até mesmo o não menos saudoso Otoniel Mota, com suas poesias, o cultivo das artes no seio evangélico brasileiro restringiu-se à sua esfera exclusivamente religiosa.

Com isso, não notamos a presença de evangélicos no cinema, no teatro e na música popular, áreas demonizadas por boa parte da comunidade evangélica.

Como mudar esta situação? Conscientizando-nos de que, sendo criadas e postas em prática de uma forma que não se choque com os padrões divinos, a arte e a cultura devem ser exercitadas e apreciadas pelo verdadeiro cristão, pois são centelhas da criatividade divina sobre o ser humano.


POR : ANDRÉ TADEU DE OLIVEIRA

2 comentários:

  1. gostei do post.
    quando eu era evangelica existia uma distinção tão clara, um abismo tão grande entre o que se podia ouvir/musica gospel e musica proibida/do mundo.

    infelizmente minha "vida religiosa" coincide com o lançamento de californication do red hot. lastima. :S

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  2. Esta distinção não possui o menor embasamento bíblico ou teológico. De acordo com a doutrina reformada clássica, um conceito bate de frente com esta bobeira de separar as artes em cristãs ( santas) e seculares ( diabólicas)

    1- Doutrina da Graça Comum : Mesmo o ser humano sendo corrompido, possuindo uma indole má ( Veja que interessante; há uma enorme semelhança entre esta idéia tipicamente agostiniana-calvinista e o pressuposto defendido pelo ateu J.Paul Sartre, onde o próximo é qualificado como " inferno".), ele é dotado de uma graça natural, isto é, a capacidade de fazer algo realmente bom. Isto, independentemente da fé. Nesse caso, mais vale a verdade por parte de um ateu do que a farsa defendida por um crente.

    Trazendo este conceito para o mundo das artes; uma boa expressão artística, que seja realmente de qualidade e proporcione algum tipo de lazer saudável, encaixa-se nesta questão da graça comum.

    O caso da aversão a qualquer arte não cristã manifestada pela maioria dos evangélicos brasileiros, resvala, a meu ver, não apenas no fundamentalismo, mas na ignorância, mesmo !

    Um teólogo bem legal que trata esta questão da cultura, é o alemão Paul Tillich. Pretendo escrever sobre ele e seu método da correlação.Um cara que tabalha bem o pensamento tillichiano no Brasil, é o pastor anglicano Calvani. Abaixo, o link de seu livro, que é fantástico, sobre esta questão.

    http://davymoura.blogspot.com/2010/08/calvani-carlos-eduardo-teologia-da-arte.html

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