A Europa do Século 17 não era um lugar aprazível para se viver, principalmente na parte continental conhecida nos dias atuais como Alemanha. De 1618 a 1648, a região do então Sacro Império Romano Germânico foi devastada por um sangrento conflito conhecido na história como Guerra dos Trinta Anos. O pano de fundo para este conflito, que ceifou aproximadamente 40% da população rural e 30% da urbana, foi à religião. Obviamente, sabemos que por detrás desta máscara piedosa existiam grandes interesses econômicos. Em 1648, foi estabelecida a conhecida “Paz de Vestfália”, reconhecendo, oficialmente, a existência legal de três grandes grupos religiosos: católicos romanos, luteranos e reformados.
No entanto, para o grosso da população, assim como que para parte significativa dos pensadores, este terrível empreendimento bélico foi causado pela intransigência em assuntos religiosos. Junto com correntes filosóficas surgidas na Inglaterra, muitos historiadores consideram este contexto como precursor das idéias libertárias do iluminismo, afinal, existia uma crescente insatisfação com o dogmatismo religioso responsável por tremendo banho de sangue. Assim, o século 17 veria o nascimento de grandes pensadores que se destacariam pela defesa radical da tolerância em assuntos religiosos.
Boa parte destes filósofos nutria um compreensível asco pela religião organizada. Alguns eram firmes crentes em Deus, aproximando-se do teísmo clássico. Outros flertavam com o deísmo, e uma crescente minoria assumia uma posição claramente agnóstica ou até mesmo atéia. Independentemente de convicção de fé defendida por estes homens, devemos muito a sua coragem e persistência. Se desfrutamos de uma completa liberdade de pensamento em nossos dias, devemos tal situação, em parte, aos pais do iluminismo.
No entanto, alguns religiosos, até mesmo clérigos, ligados de forma institucional as suas tradições eclesiásticas, também se destacaram na luta por uma sociedade mais tolerante. Infelizmente não foram numericamente expressivos, mas a importância de seu trabalho é tão digna de crédito como a dos grandes homens do iluminismo secular. Dentre estes poucos cristãos, gostaria de destacar a figura de Phillip Jacob Spner, conhecido como o pai do pietismo protestante. Não vou escrever uma biografia sobre este grande vulto do cristianismo evangélico, gostaria de me ater em um breve comentário a respeito da tolerância para com ateus e crentes de outras confissões consideradas heterodoxas contido em sua obra prima, denominada “ Pia Desideria”, traduzida em português como “ Desejos Piedosos”. Neste pequeno grande clássico da literatura cristã do século 17, publicado em 1675, Spener propõe uma nova reforma para a Igreja Evangélica como um todo, incluindo luteranos e reformados, ramos que tinham se enfrentado por ocasião da triste guerra dos trinta anos. Os elementos práticos para esta reforma foram resumidos nos seguintes seis pontos:
1- Intensificação da leitura bíblica por parte dos crentes.
2- Quebra do monopólio pastoral. Todo o cristão deveria atuar de forma decisiva na vida eclesial .
3- Primazia do amor fraternal sobre o mero conhecimento doutrinário.
4- Moderação nas discussões referentes a pontos doutrinários.
5- A formação teológica oferecida aos futuros pastores deveria combinar erudição acadêmica com aspectos práticos. O pastor não deveria ser apenas um intelectual, mas um cura de almas.
6- Seguindo esta linha, deveria ser elaborada uma verdadeira reforma na formação teológica.
Após este breve resumo dos seis pontos reformatórios propostos por Spener, vamos ao fragmento de seu texto onde ele propõe de forma clara a tolerância em assuntos de fé. Contudo, um comentário se faz necessário. O escrito de Spener faz uso de determinados termos preconceituosos. A designação “herético” pode chocar nossas mentes modernas. Não obstante, era usual no período em que o pietista luterano viveu. Quando estudamos história, não podemos avaliar o comportamento das pessoas que viveram uma determinada época através de nossos próprios valores. A despeito do uso de palavras consideradas ofensivas, em um contexto onde um herético não tinha sequer direito a vida, Spener defendia não apenas sua integridade física, mas a liberdade para que tal pessoa permanecesse em sua convicção religiosa. Outra característica pode incomodar o leitor não afeito ao mundo religioso: o tom proselitista encontrado em partes do texto. Não podemos nos esquecer que Phillip Jacob Spener foi um pastor que passou por uma experiência religiosa mística bastante forte, portanto, mesmo defendendo a ampla liberdade religiosa, sonhava com a conversão de seus ouvintes de forma voluntária. Contextualizando para os dias atuais, Richard Dawkins, em seu livro “Deus, um Delírio”, não esconde de ninguém que ficaria extremamente feliz se alguns de seus leitores abraçassem a posição ateísta após o término da leitura. Dito isto, deixemos a palavra com o teólogo do século 17.
ACIMA DE TUDO ESTÁ A DEMONSTRAÇÃO DO AMOR CORDIAL.
Em quarto lugar, tenhamos uma atitude de amor cordial para com os não-crentes e para com os heréticos. Devemos evidenciar-lhes que não temos nenhum prazer em sua incredulidade, sua crença ou prática errada e sua propagação. Antes, opomo-nos com vigor a isso, ainda que em outras coisas que dizem respeito à vida humana, os reconheçamos como nossos próximos e irmãos, tendo para com eles a disposição de coração que nos é ordenada no mandamento, de os amarmos como a nós mesmos. Isto fazemos com base no direito geral de toda a criação e do amor de Deus que se estende sobre todos. Insultar ou magoar um não-crente ou herético por causa de sua religião é um zelo carnal e prejudicial à sua conversão. A justa aversão por sua religião não deve abolir ou enfraquecer o amor que lhe devemos.
Phillip Jacob Spener- Pia Desidéria, páginas 97 e 98.
No entanto, para o grosso da população, assim como que para parte significativa dos pensadores, este terrível empreendimento bélico foi causado pela intransigência em assuntos religiosos. Junto com correntes filosóficas surgidas na Inglaterra, muitos historiadores consideram este contexto como precursor das idéias libertárias do iluminismo, afinal, existia uma crescente insatisfação com o dogmatismo religioso responsável por tremendo banho de sangue. Assim, o século 17 veria o nascimento de grandes pensadores que se destacariam pela defesa radical da tolerância em assuntos religiosos.
Boa parte destes filósofos nutria um compreensível asco pela religião organizada. Alguns eram firmes crentes em Deus, aproximando-se do teísmo clássico. Outros flertavam com o deísmo, e uma crescente minoria assumia uma posição claramente agnóstica ou até mesmo atéia. Independentemente de convicção de fé defendida por estes homens, devemos muito a sua coragem e persistência. Se desfrutamos de uma completa liberdade de pensamento em nossos dias, devemos tal situação, em parte, aos pais do iluminismo.
No entanto, alguns religiosos, até mesmo clérigos, ligados de forma institucional as suas tradições eclesiásticas, também se destacaram na luta por uma sociedade mais tolerante. Infelizmente não foram numericamente expressivos, mas a importância de seu trabalho é tão digna de crédito como a dos grandes homens do iluminismo secular. Dentre estes poucos cristãos, gostaria de destacar a figura de Phillip Jacob Spner, conhecido como o pai do pietismo protestante. Não vou escrever uma biografia sobre este grande vulto do cristianismo evangélico, gostaria de me ater em um breve comentário a respeito da tolerância para com ateus e crentes de outras confissões consideradas heterodoxas contido em sua obra prima, denominada “ Pia Desideria”, traduzida em português como “ Desejos Piedosos”. Neste pequeno grande clássico da literatura cristã do século 17, publicado em 1675, Spener propõe uma nova reforma para a Igreja Evangélica como um todo, incluindo luteranos e reformados, ramos que tinham se enfrentado por ocasião da triste guerra dos trinta anos. Os elementos práticos para esta reforma foram resumidos nos seguintes seis pontos:
1- Intensificação da leitura bíblica por parte dos crentes.
2- Quebra do monopólio pastoral. Todo o cristão deveria atuar de forma decisiva na vida eclesial .
3- Primazia do amor fraternal sobre o mero conhecimento doutrinário.
4- Moderação nas discussões referentes a pontos doutrinários.
5- A formação teológica oferecida aos futuros pastores deveria combinar erudição acadêmica com aspectos práticos. O pastor não deveria ser apenas um intelectual, mas um cura de almas.
6- Seguindo esta linha, deveria ser elaborada uma verdadeira reforma na formação teológica.
Após este breve resumo dos seis pontos reformatórios propostos por Spener, vamos ao fragmento de seu texto onde ele propõe de forma clara a tolerância em assuntos de fé. Contudo, um comentário se faz necessário. O escrito de Spener faz uso de determinados termos preconceituosos. A designação “herético” pode chocar nossas mentes modernas. Não obstante, era usual no período em que o pietista luterano viveu. Quando estudamos história, não podemos avaliar o comportamento das pessoas que viveram uma determinada época através de nossos próprios valores. A despeito do uso de palavras consideradas ofensivas, em um contexto onde um herético não tinha sequer direito a vida, Spener defendia não apenas sua integridade física, mas a liberdade para que tal pessoa permanecesse em sua convicção religiosa. Outra característica pode incomodar o leitor não afeito ao mundo religioso: o tom proselitista encontrado em partes do texto. Não podemos nos esquecer que Phillip Jacob Spener foi um pastor que passou por uma experiência religiosa mística bastante forte, portanto, mesmo defendendo a ampla liberdade religiosa, sonhava com a conversão de seus ouvintes de forma voluntária. Contextualizando para os dias atuais, Richard Dawkins, em seu livro “Deus, um Delírio”, não esconde de ninguém que ficaria extremamente feliz se alguns de seus leitores abraçassem a posição ateísta após o término da leitura. Dito isto, deixemos a palavra com o teólogo do século 17.
ACIMA DE TUDO ESTÁ A DEMONSTRAÇÃO DO AMOR CORDIAL.
Em quarto lugar, tenhamos uma atitude de amor cordial para com os não-crentes e para com os heréticos. Devemos evidenciar-lhes que não temos nenhum prazer em sua incredulidade, sua crença ou prática errada e sua propagação. Antes, opomo-nos com vigor a isso, ainda que em outras coisas que dizem respeito à vida humana, os reconheçamos como nossos próximos e irmãos, tendo para com eles a disposição de coração que nos é ordenada no mandamento, de os amarmos como a nós mesmos. Isto fazemos com base no direito geral de toda a criação e do amor de Deus que se estende sobre todos. Insultar ou magoar um não-crente ou herético por causa de sua religião é um zelo carnal e prejudicial à sua conversão. A justa aversão por sua religião não deve abolir ou enfraquecer o amor que lhe devemos.
Phillip Jacob Spener- Pia Desidéria, páginas 97 e 98.
POR ANDRÉ TADEU DE OLIVEIRA
demais. de verdade. acho , pra dizer o minimo, fundamental a difusão desses lideres "veios" do protestantismo "tolerante". mesmo os catolicos e deistas tolerantes deveriam ser mais conhecidos. :/ . em tempos como o nosso, é o que mais precisamos.
ResponderExcluirbeijo
É isso aí, Rayssa.... vou escrever mais sobre este povo. Pretendo escrever sobre um católico famoso que viveu um século antes do Spener.
ResponderExcluirLegal vc ter achado este texto realmente tolerante. Alguns termos, como escrevi, mostram um certo preconceito, mas deve ser interpretado de acordo com sua época. Afinal, século 17 não é 21.
A propósito, acho que tirando o John Locke, não conheço ng nesta época que defendesse a liberdade religiosa de forma tão clara como o Spener. Acretido que a maioria dos grandes escritos iluministas foram publicados após o Disidéria, certo ?
Outro ponto interessante. O Spener era um religioso praticante, preocupado com sua fé e com a expansão da mesma. Não era um secularista. Porém, mesmo amando e defendendo sua fé, defendia o direito do próximo possuir outra crença, ou nenhuma, mesmo não concordando com estas posturas.
cara, tem um par de nego que mesmo antes ja defendia essa ideia de tolerancia.
ResponderExcluireu teria que parar pra ver, mas muuuuitos cristãos (catolicos e protestantes) se apegavam nos molhos da tolerancia, convencimento (ou inves de conversão forçada) e caridade.
mesmo no seculo XVI. eu teria q ver isso. mas sim, essa galere não era tão pequena assim, não. :D
É, até Lutero, na sua primeira fase, antes de ser apadrinhado pelos governantes territoriais, defendia a tolerância.
ResponderExcluirSei tb do exemplo de Sebastião Castéllio, que rompeu com Calvino após o episódio Servetus.