terça-feira, 31 de agosto de 2010

Casamentos inter-religiosos, uma abordagem histórica e teológica.


Com exceção de algumas pessoas, são raros os indivíduos que atingem a felicidade sem uma companhia. A busca pela cara metade é parte fundamental da existência humana. Além dos vínculos familiares e das amizades conquistadas, a relação homem-mulher, precisamente em seu aspecto sentimental e erótico, é essencial para uma vida saudável.


Como ser humano, tal situação não seria diferente para o cristão. No entanto, entre inúmeros fatores que influenciam na escolha do companheiro, um é motivo de bastante controvérsia. Seria lícito o envolvimento entre um cristão e uma pessoa “descrente”? Deve um crente em Jesus Cristo namorar, noivar e contrair matrimônio com um ateu, agnóstico, budista, judeu ou muçulmano? Boa parte da igreja evangélica brasileira, orientada por uma teologia moralista, fundamentalista e exclusivista, condena tais relacionamentos, denominando-os como “jugo desigual”. Tal expressão foi retirada de 2 Coríntios 6.14. Segundo a maioria dos exegetas modernos, tal texto não se refere ao casamento. Além deste texto, elementos ultraconservadores utilizam inúmeras passagens do Antigo Testamento como base para a proibição de relacionamentos entre pessoas de confissão religiosa diferente. Estes textos reprovam, de forma veemente, a união entre homens israelitas e mulheres de outras nacionalidades, insistindo em casamentos somente entre hebreus, visando uma pureza religiosa, cultural e até mesmo racial do povo judeu. Segundo esta visão, em nossos dias, o cristão, como integrante do novo Israel de Deus, deveria se comportar desta forma, abstendo-se de uniões mistas.


Esquecem-se os defensores desta idéia que estes textos foram, em sua grande maioria, escritos no período pós-exílico, isto é, após o édito promulgado pelo rei persa Ciro, em 538 aC, autorizando a volta dos judeus para seus antigos territórios. Visando a restauração de uma identidade judaica parcialmente destruída após anos de jugo estrangeiro, a proibição de casamentos com pessoas estrangeiras e de outras crenças foi um dos artifícios utilizado por líderes como Esdras e Neemias para que esta finalidade fosse atingida. Desta forma, estas medidas radicais foram históricas e momentâneas, não podendo ser transportadas para os dias atuais. Ainda no Antigo Testamento, há relatos de inúmeras uniões matrimoniais entre judeus e gentios. Entre eles está o da moabita Rute, que contraiu núpcias com um israelita, antes mesmo de ter se convertido ao Deus de Israel, habitando normalmente entre os israelitas.


Retornando ao período cristão, podemos afirmar que casamentos inter-religiosos, ou exógamos, foram freqüentes. De acordo com o sociólogo estadunidense Rodney Stark, em seu livro “O crescimento do cristianismo, um sociólogo reconsidera a história”, as uniões matrimoniais entre mulheres cristãs e homens pagãos foram fundamentais para o crescimento da jovem igreja cristã.
Segundo Stark, o número de mulheres convertidas ao cristianismo era substancialmente superior ao dos homens. Havia um excesso de mulheres dentro da igreja primitiva. Contrastando com o baixo índice de fertilidade das mulheres pagãs, as seguidoras de Cristo tinham um elevado grau de fertilidade. Como explicar tal situação, se o número de homens nas fileiras do cristianismo primitivo era bem inferior ao das mulheres? Parece óbvio que o casamento com homens pagãos seja a resposta correta. De acordo com Stark, os filhos destes casamentos inter-religiosos foram, na maioria das vezes, educados, por influência de suas mães, sob sólidos princípios cristãos, levando a uma provável conversão na idade adulta.


Além do fator fertilidade, são numerosos os relatos de maridos incrédulos convertidos ao cristianismo pela influência de suas esposas. Provavelmente, sem estas uniões inter-religiosas, o cristianismo não teria obtido o elevado crescimento que teve em seus primeiros dias.
Corroborando a tese de Stark, o teólogo e historiador da igreja Adolf Von Harnack, observou que havia registros de vários casamentos mistos e que, em quase todos os casos, o marido era pagão e a esposa cristã.


Michael Walsh, também historiador, comenta a proposta de Inácio de Antioquia, um dos chamados pais apostólicos, em que os cristãos deveriam casar-se com a autorização do líder eclesiástico local: “A proposta de Inácio deve ter sido uma tentativa de encorajar o casamento entre cristãos, pois inevitavelmente os casamentos entre cristãos e pagãos eram comuns, especialmente nos primeiros anos. A princípio, a igreja não desencorajou essa prática, que tinha suas vantagens: podia conduzir outras pessoas ao aprisco.”


Apesar de condenado por alguns pais da igreja, o casamento inter-religioso nunca foi proibido pela mesma. Por intermédio deste tipo de união, o cristianismo foi presenteado com um dos maiores pensadores de sua história, Agostinho de Hipona. Sua mãe, Mônica, era oriunda de uma devota família cristã, sendo que sua fé e exemplo foram fatores cruciais para a conversão do jovem professor de retórica.


Já seu pai, Patrício, era pagão, funcionário do poder público romano. Em seu leito de morte, também por influência de Mônica, Patrício abraçou o cristianismo.
A fim de definir uma doutrina oficial sobre o assunto, o IV Concílio Ecumênico, realizado em 451, na cidade de Calcedônia, e aceito por todos os grupos cristãos, inclusive protestantes, determinou permitir oficialmente o casamento entre uma pessoa cristã e outra não cristã, desde que a parte crente se comprometesse em esforçar-se ao máximo em apresentar o eventual filho ao batismo e educar-lhe na fé de Cristo.


Até mesmo no início da Idade Média, quando boa parte dos bárbaros foram cristinianizados, este tipo de união era bastante habitual e, na maioria das vezes, convertia-se em um benefício para o cristianismo. Clóvis, monarca que uniu as inúmeras tribos francas sob um único império, casou-se, ainda pagão, com Clotilde, uma piedosa cristã. Graças à influência de sua esposa, Clóvis se converteu a Cristo e, com ele, todo seu povo. O mesmo se deu com o soberano do reinado de Kent, Etelbardo, cujo casamento com uma princesa cristã abriu as portas deste pequeno principado localizado na Grã-Bretanha para missionários cristãos.


Durante o período de dominação árabe em Portugal e Espanha, era absolutamente comum a união entre uma princesa cristã e um califa muçulmano. Na maioria dos casos, ambas as partes mantinham sua crença, respeitando a expressão de fé do outro.
Após tão claros apontamentos históricos, fica claro que o autoritário costume mantido e imposto por determinados grupos evangélicos, negando a bênção nupcial a um membro da comunidade que deseja construir sua vida matrimonial com um chamado “descrente”, não encontra paralelo na história do cristianismo.


Independentemente da história, a opinião de pensadores e teólogos protestantes sobre o tema é bastante esclarecedora.
Martinho Lutero, dentre os reformadores, foi o que mais se manifestou sobre o assunto. Para Lutero, a norma relativa ao casamento que exigia a mesma fé de ambos os nubentes, era uma invenção diabólica que restringia a liberdade cristã. Comentando recentes proibições impostas pelo papado através do direito canônico, o reformador alemão afirma: “A quinta razão estabelecida pelo direito canônico é a incredulidade, ou seja, não posso casar com uma turca, judia ou herege. Admira-me que estes tiranos criminosos não se envergonham até o fundo do coração ao se oporem de forma tão evidente ao claro texto de Paulo em 1Co 7.13 . Por isso, saibas que o matrimônio é um assunto físico exterior, como qualquer outro negócio secular. Assim como posso comer, beber, dormir, passear, cavalgar, negociar, conversar e trabalhar com um gentio, judeu, turco ou herege, também posso casar com ele e continuar casado, e não te importes com as leis loucas que to querem proibir. Pois é fácil encontrar cristãos que por dentro são descrentes piores do que qualquer judeu, gentio, turco ou herege. Um gentio é um homem ou mulher criado por Deus.”


Para Lutero, assim como para todos os demais reformadores, o casamento não era um sacramento, mas, sim, um assunto exterior, criado por Deus para todo o gênero humano. Ao contrário dos sacramentos da Ceia e Batismo, não requer fé. Desta forma, a bênção matrimonial não exige a mesma crença de ambos, pois não se trata de um meio de graça.


Em um comentário sobre o capítulo 7 da Primeira Epístola aos Coríntios publicado em 1523, Lutero enumerou inúmeros conselhos a respeito da união matrimonial. No que diz respeito à união entre um crente e um descrente, é enfático em afirmar que, se o pretendente incrédulo for uma pessoa honrada que não imponha empecilhos para o bom cultivo da fé do crente, esta união deve ser permitida e apoiada. Convém lembrar que Lutero não exigia a futura conversão do cônjuge praticante de outra religião. Esta deveria acontecer por intermédio da graça de Deus, sem qualquer tipo de coação ou atrito religioso. Já no século XX, outro alemão, Dietrich Bonhoeffer em seu livro “Ética”, traça uma sucinta e evangélica idéia a respeito do matrimônio. Para ele, o casamento é um direito concedido por Deus a todo o ser humano, direito este que, mesmo ponderando inúmeros fatores, inclusive o religioso, deve ser decidido livremente pelo futuro casal, sem pressões do estado, família e igreja.
A limitação do direito de matrimônio pela exigência de ambos os cônjuges pertencerem a uma determinada religião, respectivamente à qualificação de todos os casamentos não religiosos como concubinato, como ensina a doutrina católico-romana, priva-o de seu caráter e direito essencialmente natural e faz de uma ordem da natureza uma ordem de graça e salvação”, afirma Bonhoeffer.


Portanto, essa decisão é de caráter pessoal, devendo o próprio casal analisar a situação. Caso haja respeito para com a fé diferente professada pelo eventual cônjuge, assim como em todos os outros aspectos, não deve haver impedimento. Nestes casos, amor e respeito caminham de mãos dadas, sendo as melhores armas para o sucesso do matrimônio. A decisão requer maturidade e diálogo honesto entre ambas às partes; fora isto, que o nome de Cristo não seja usado para sufocar uma das mais belas manifestações de Deus na terra, o amor entre um homem e uma mulher.
Foto : Reverendo Luis Longuini Neto, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil ( IPB ) em Vila Isabel, Rio de Janeiro, realizando a cerimônia de casamento da atriz global Juliana Paes, simpatizante do kardecismo.


POR : ANDRÉ TADEU DE OLIVEIRA

6 comentários:

  1. Grande Lutero!!!
    Como vc bem sabe, caro André, esses textos foram (e continuam sendo) de enorme impotância em minha vida!!
    Esse assunto do suposto "jugo desigual" é uma das gandes ironias dos evangélicos de hoje: eles adoram meter o pau na ICAR, supondo que ela tenha continuado a ser a mesma desde a Idade Média (grave erro), mas pensam e agem da mesmíssima forma que a Igreja medieval!!
    Tudo o que os os "protestantes" de hoje não sabem é ser realmente protestante!

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  2. Juan; Lutero, como qualquer pessoa, fez e escreveu muita besteira.
    No entanto, foi autor de muitas pérolas. Principalmente no início de seu ministério. O jovem Lutero era quase revolucionário.
    Pena que a amizade com os principes apagou esta chama.

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  3. A pratica do Amor Verdadeiro do Criador, Pai e Mãe de toda a Humanidade tem poder para transcender não somente as denominações cristãs e as religiões, mas também as nacionalidades e as raças. É o caminho o mais rapido para construir um Mundo de Paz na Terra.

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  4. Caro, quais os pais da igreja que escreveram contra o jugo desigual?

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  5. NA TURQUIA EU POSSO ME CASAR COM UMA LINDA MUÇULMANA TURCA MSMO EU SENO CATOLIKO??

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