segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Os Pais da Igreja e a Justiça Social


A chamada Teologia Patrística compreende numerosas obras escritas entre os séculos I e VIII da Era Cristã, que definiram as doutrinas básicas seguidas pelos três ramos do cristianismo : ortodoxia oriental, catolicismo-romano e o protestantismo. Este nome significa, literalmente, teologia dos pais da igreja. No entanto, a contribuição para a então nascente teologia cristã, segundo especialistas, não ficou restrita ao elemento masculino. Segundo o teólogo estadunidense Christoper A.Hall, várias mulheres tiveram profunda participação nessa etapa decisiva de consolidação do pensamento cristão. É o caso de Marcella e Paula, discípulas de Jerônimo, pai da igreja responsável pela tradução da Bíblia para o latim, popularmente conhecida como Vulgata. Segundo Hall, toda a obra de Jerônimo foi realizada sob a influência destas duas mulheres. Infelizmente, com o passar do tempo, a participação da mulher na elaboração da teologia cristã foi sendo suprimida pelo crescente machismo que tomava conta da igreja.

Além de temas importantíssimos, como trindade, divindade, natureza e encarnação de Cristo, os chamados pais da igreja não deixaram de lado a luta por uma ordem sócio-econômica verdadeiramente justa. Como nos dias atuais, esses teólogos viveram em sociedades marcadas por uma forte desigualdade social, em que a exploração do homem pelo homem era comum. Sendo assim, combateram a pobreza através da pregação e de vários escritos.

Protesto veemente

Dentre os vários pais da igreja, nossa atenção estará voltada aos que atuaram no século IV, mais especificamente no contexto oriental. São eles: Basílio Magno, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo. Nessa época, o cristianismo já estava, politicamente, unido ao império romano. Aquela antiga religião de pobres, escravos, mulheres e crianças agora era custeada e mantida de forma oficial pelo império. A fé cristã, considerada subversiva pelos antigos imperadores pagãos, tornou-se poderosa aliada do poder estatal.

Mesmo sendo oficialmente cristã, Roma manteve toda a estrutura social de tempos anteriores; elevada concentração de renda e terras, regime escravagista e uma enorme massa de pobres livres. Contra essa situação, os pais da igreja protestaram veementemente.

Basílio Magno, também conhecido como Basílio de Cesaréia, região da Capadócia, nasceu em 330 depois de Cristo. Oriundo de família cristã, foi ordenado sacerdote em 364, sagrando-se bispo seis anos depois. Lutou de forma dura contra o arianismo, linha teológica que afirmava que Cristo seria apenas a maior criatura de Deus, portanto, não da mesma substância que Deus Pai. Tal doutrina colocava em dúvida a própria divindade de Cristo. Além do erro ariano, o bispo de Cesaréia foi uma voz profética contra os males sociais de seu tempo. Em sua homilia intitulada “Contra a riqueza”, assim escreveu: "Tais são os ricos; declaram-se senhores dos bens comuns que eles roubaram só porque são os primeiros ocupantes. Se cada qual não guardasse para si senão aquilo que é requerido para suas necessidades comuns, deixando para os indigentes o supérfluo, tanto a riqueza como a pobreza seriam abolidas”. Para Basílio, a separação entre ricos e pobres é fruto da ganância dos primeiros, não sendo uma ordem natural.

Gregório de Nazianzo nasceu entre 329 e 300. Filho do bispo de Nazianzo, era amigo de Basílio Magno. Contra sua vontade foi indicado pelo mesmo Basílio bispo da pequena cidade de Sassima. Ótimo orador mudou-se para Constantinopla, onde usou seu talento contra o arianismo. É de sua autoria a obra “Cinco discursos teológicos sobre a trindade”.

Apregoando uma sociedade baseada na igualdade primitiva, deixou o seguinte escrito:

“Imitemos este lei sublime e primeira de um Deus que faz cair chuva sobre os justos e sobre os maus e faz com que o sol se levante sobre todos os homens. Às criaturas que vivem sobre a Terra, ele concede imensos espaços, fontes, rios, florestas. Para as espécies aladas ele criar o ar, e a água para a fauna aquática. Fornece a cada um todo o necessário para a subsistência. E seus dons não caem nas mãos dos fortes, não são medidos por lei, nem repartidos entre estados. Tudo é comum, tudo existe em abundância. Quando os próprios homens amontoaram em seus cofres ouro, prata, diamantes e coisas do gênero, então uma louca arrogância endureceu suas feições. Eles não refletem sobre o fato de que pobreza e riqueza, condição livre e servil, além de outras categorias semelhantes chegaram tarde demais entre os homens e se propagaram como epidemias, trazidas pelo pecado do qual eram invenções”.

Comunismo Cristão

Segundo Gregório, a ordem social estabelecida por Deus nos primórdios da criação equivale à ordem encontrada na natureza. Tudo seria comum, nenhuma lei, nenhum estado seriam tutores de propriedades confinadas nas mãos de uma minoria. A distinção entre rico e pobre, patrão e empregado, era fruto do pecado que se encontra no seio da humanidade, não fazendo parte dos planos do Deus trino. Portanto, não seria errado considerar que, para Gregório, uma espécie de comunismo cristão seria a ordem social mais justa.

Inúmeros outros escritores patrísticos seguiram este pensamento. João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, chegou a formular a seguinte questão: “Diz-me uma coisa; donde achas que provém à riqueza? Tu mesmo de quem a recebeste? Do avô, dirá alguém, ou do pai. Poderás tu, voltando às gerações, provar que sua posse é justa? Não poderias, porque seu principio e sua raiz são necessariamente o fato de alguma injustiça. Porque Deus no começo não fez um rico, outro pobre, deu a todos a mesma terra. Sendo assim, por que possuis vários alqueires de terra, sendo que seu vizinho nada tem?”

Comentário duro, mas verdadeiro. Que a Igreja de Cristo no presente século, além de suas obras de beneficência e ação social, mirando-se no exemplo dos pais da igreja, levante sua voz contra esta ordem capitalista desumana, que produz miséria e desigualdade.


ANDRÉ TADEU DE OLIVEIRA


Fontes :


Os Padres da Igreja- Séculos IV- VIII- Volume Dois- Michel Spanneut- Loyola

Lendo As Escrituras com os Pais da Igreja- Christopher A.Hall- Ultimato



3 comentários:

  1. Fantástico André, muito bom! O "Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja", você leu sob indicação minha na aula de Hermenêutica? Se foi, fico satisfeito, porque vejo em seu texto um "fruto" da minha aula! Graças a Deus!!! Rapaz, mas que pena que seu texto só chegou agora... Explico: semana passada completei a redação de um capítulo de um livro coletivo sobre cristianismo primitivo, produto de um grupo de estudos sobre este tema na UERJ. A editora deles deverá publicar este material. Meu capítulo foi especificamente uma tentativa de estabelecimento de diálogo entre a teologia expressa nas homilias de João Crisóstomo sobre o cuidado para com os pobres e a teologia latino-americana contemporânea. Defendi a tese que tanto a teologia da libertação como a teologia da missão integral evangelical radical têm a aprender a partir de um resgate da teologia do Crisóstomo. Se seu texto tivesse chegado semana passada, eu o teria citado! Mas enfim, tudo bem. Agora, só uma observação, sem querer ser chato: tecnicamente a expressão "teologia patrística" só pode ser aplicada a partir do século II, com os chamados Pais Apostólicos, e não a partir do século I. Enfim, uma observação simples que não desmerece seu texto oportuno e bem escrito.
    Paz e bem,
    Carlos Caldas

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  2. Professor Caldas, boa tarde.

    Sim, o livro do Hall foi fruto de sua indicação. Simplesmente " pirei " quando li esta obra. Já gostava de patrística, mas este escrito foi meio que um manual esclarecedor. Muito obrigado pela dica !

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  3. Que bom meu prezado, que bom! Fico muito satisfeito! Graças a Deus!!!
    Continue com esta sua boa obra de produzir estes textos esclarecedores e provocantes!
    Aquele abraço,
    Carlos Caldas

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