segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Política. Por Rubem Alves



Uma aliança política que jamais aconteceria em outros tempos arrancou das cavernas da minha memória uma piadinha do Reader’s Digest de que me havia esquecido. É assim. Havia, numa cidadezinha dos Estados Unidos, uma Igreja Batista que se gabava do seu rigor no combate às bebidas alcoólicas, sacramentos do Inferno. Havia, nessa mesma cidade, uma cervejaria enorme que fabricava milhares de litros de cerveja e era fonte de empregos, de riqueza, de alegrias e bebedeiras.

Claro que a dita Igreja Batista tinha, como missão, combater a Cervejaria: era a luta do Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade. Aconteceu, entretanto, que por razões inexplicáveis, a Cervejaria fez uma doação de 500.000 dólares à Igreja. O que provocou uma enorme confusão entre os fiéis. “Dinheiro do Demônio“, diziam os mais convictos; “Não pode ser aceito.“ Se fosse uma doação de 100 dólares a decisão seria fácil. Os 100 dólares seriam recusados. Mas 500.000 dólares é quantia difícil de ser recusada. Confesso que eu mesmo estremeceria... Convocou-se, então, uma assembléia para deliberar sobre o assunto. Nas Igrejas Batistas as bases são sempre consultadas antes de se tomar qualquer decisão.

Depois de inflamadas discussões que se prolongaram pela madrugada, finalmente um dos membros da Igreja fez uma proposta que resolveu o conflito e foi aprovada por unanimidade: “A 1ª Igreja Batista da cidade de Beerland resolve aceitar a doação de 500.000 dólares feita pela Cervejaria Drinkjoy na firme convicção de que o Diabo ficará furioso quando souber que o seu dinheiro vai ser usado para a glória de Deus.“ Pois é: todas as alianças são possíveis e aceitáveis desde que se encontrem as palavras explicativas adequadas. Pois quem diria que o Partido Brasileiro do Reino dos Homens iria um dia fazer aliança com o Partido Universal do Reino de Deus? Esses dois partidos representam ideais irreconciliáveis, como os ideais da Igreja Batista e da Cervejaria.

Karl Mannheim é um dos meus sociólogos favoritos. Tinha imaginação. Era inteligente. Não precisava se valer de estatísticas para pensar. (Hoje, nas universidades, a inteligência foi substituída pelas estatísticas. Parece que, no mundo da ciência, só são aceitas as afirmações que forem derivadas de tabelas estatísticas. Já ouvi uma discussão sobre quantas tabelas estatísticas uma tese de mestrado deve ter, para ser aceita...). Pois há mais de 50 anos Mannheim predisse o desaparecimento das utopias, na política. O que são utopias? Utopias são fantasias de uma sociedade melhor que servem para guiar a ação. Minha utopia, por exemplo, tem a forma de um jardim. Contra as utopias há a sentença dos realistas que as recusam sob a alegação de serem irrealizáveis. Mas o Mário Quintana responde:

“Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!”

Mannheim vislumbrou um momento em que, com o abandono das utopias, os políticos passariam a se guiar por interesses pragmáticos de poder, que podem ser ou 500.000 dólares ou 500.000 votos... Quando a gente vê São Jorge e o Dragão estabelecendo alianças é porque eles abandonaram os seus sonhos. O que se tem é um produto híbrido, um São Jorge com rabo de Dragão, ou um Dragão com cara de São Jorge.

O livrinho do Orwell Revolução dos Bichos (Animal Farm, em inglês) fala sobre isso. É sobre uma revolução que os bichos, liderados pelos porcos, fizeram na fazenda para se livrarem do jugo do fazendeiro que os explorava em benefício próprio. Os porcos tinham razões de sobra para serem os líderes da revolução. Eram os animais mais sacrificados. Eram engordados para se transformarem em linguiça, torresmo, toucinho, lombo, leitoa assada, pernil assado... Mas, no decorrer do processo revolucionário importantes transformações aconteceram. Pois, como os próprios porcos diziam, o processo é histórico, dialético, não é rígido, não é linear... E os porcos começaram a ver que o fazendeiro e seus empregados não eram tão ruins assim. Havia interesses comuns que permitiam que eles fizessem proveitosas alianças. A última cena do livrinho é cômica e terrível: a bicharada, do lado de fora, olha através da janela, para dentro da casa do fazendeiro. Lá estava acontecendo uma reunião festiva para celebrar um novo dia político de cooperação entre fazendeiros e porcos. E os bichos, perplexos, olhavam para o fazendeiro, olhavam para os porcos, e não conseguiam saber quem era quem: o fazendeiro tinha focinho de porco e os porcos fumavam charutos como o fazendeiro...





RUBEM ALVES

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